quinta-feira, 26 de junho de 2008

A arte de desamar

Por Unknown,



Desamar. Deixar de amar. Essa foi a decisão de João Pedro diante do espelho. "Vou desistir de amar. Não quero sofrer de novo", disse, com a boca cheia de espuma enquanto escovava os dentes de manhã. Maria Clara, 28 anos, era uma mulher bonita, inteligente, fazia mestrado em Literatura na Universidade de Brasília. Tinha vida independente. O tempo todo tomado para os estudos. Os pais moravam em São Paulo e ela, numa quitinete no Sudoeste. João, 25 anos, trabalhava num sebo de livros e discos na Asa Sul. Morava na Octogonal com a família.

Se conheceram na quarta-feira passada.

João Pedro tem o mal dos poetas, se apaixona toda semana, às vezes até pela mesma mulher. Gosta do seu emprego, vive no meio de grandes escritores, conversa com eles o tempo todo enquanto trabalha. Nas conversas com amigos gostava de repetir "quem gosta de ler nunca está sozinho". Mas, seu passado punk-anarquista não o deixava se seduzir por academicistas, por guetos literários, comuns nos dias de hoje. Tipo pessoas que babam em mesa de bar uma cultura decorada, insípida, inodora e purgante. Gente incapaz de ver num poema tosco, sujo, a chama da literatura, maldita literatura urbana.

Clara procurava um livro de Baudelaire, As Flores do Mal, entre estantes empoeiradas, quando João apareceu.

— Posso lhe ser útil?

— Claro, procuro As Flores do Mal, de...

Foi interrompida por João, que recitou versos do livro: "Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais/Tu que eu teria amado — e o sabias demais!"

— Isso, mesmo! Disse Clara. Os olhos brilharam.

Ele subiu uma escada e trouxe um exemplar do clássico para a estudante. A conversa sobre a vida do poeta francês se prolongou por meia hora, os clientes que esperassem. João gastou tudo o que sabia do escritor, diante de uma Clara interessada no papo e no rapaz, que não perdeu tempo, convidou-a para um filme. Combinaram de assistir Amores Parisienses, de Alain Resnais, na quinta-feira às 20h.

João não conseguiu dormir naquela noite. Sonhava estar de mãos dadas com ela, sonhava beijando sua boca de seda, sonhava passeando a língua naquela nuca morena. Mas logo pintou insegurança (comum nesses virginianos). "E se ela só quiser ser minha amiga? Só quiser companhia? Só quiser conversar???"

Numa só noite, João, deitado na cama olhando o teto mofado, viveu um grande romance e uma grande desilusão sem sair debaixo do cobertor. Decidido, falou em voz alta: "Não, não quero amar. Serei simplesmente um amigo. Rasgarei seu telefone. Deletarei seu e-mail. Não quero saber de romance, de nada, sem chance"...

A quinta-feira passou depressa para o vendedor de livros. Estava ansioso para encontrá-la. Foi pra casa, tomou banho, vestiu a velha calça de veludo preta para dar sorte e foi para frente do HFA, onde se encontraria com Maria Clara. Estava frio naquele início de noite quando Clara apareceu com seu Ford Ka vermelho. Tudo o que João planejara desmoronou depois de vê-la sair do carro lentamente com o cabelo preto esvoaçante, como numa propaganda de xampu, sorridente, como numa propaganda de pasta de dente. Seu coração acelerou, as pernas tremeram e ele pensou: "Não tem jeito, desamar, jamais".Foram ao cinema, riram, se acariciaram, se beijaram e, depois do filme, namoraram dentro do carro em frente ao Palácio do Planalto. Foi a noite mais fria e quente de Brasília este ano.Um beijo, um carinho de despedida e Clara o deixou na Octogonal. Foi para casa. Ela tinha prova naquela sexta-feira. João não queria dormir, abriu a geladeira, pegou meia garrafa de vinho e encheu um copo de requeijão cremoso. Decidiu escrever um poeminha tonto para Maria Clara: Desamar? Impossível. Mesmo que a princesa esteja em Kandahar...

Autor: Seu Zé

Sem palpites

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